Um recomeço repleto de incertezas
Resumo: Após 53 anos da ditadura Assad na Síria, o país arruinado por uma guerra civil encontra uma chance de um novo futuro, mas com inúmeros problemas adiante
Muitos acreditavam que não seria tão rápido ou tão fácil como foi, mas de maneira extremamente dinâmica, uma das ditaduras mais longevas do mundo terminou, e agora um novo governo se inicia. A queda do ex-ditador sírio Bashar al-Assad representa uma enorme fraqueza do Irã e da Rússia em não conseguir dar retaguarda ao seu mais valioso aliado no coração do Oriente Médio, todavia, a vitória dos rebeldes pode ser apenas o prelúdio de um reaquecimento sangrento de uma guerra civil que já matou mais de meio milhão de pessoas.
De um lado os russos aceitaram a derrota, ofereceram asilo para Assad e sua família e ainda mantém uma base naval importante em Tartus, na Costa do Mediterrâneo. Para o Irã, a derrocada de Assad, ditador xiita em um país majoritariamente árabe sunita, significa uma perda considerável de prestígio dentro da região. Além disso, sem um governo aliado na fronteira com o Líbano, o reabastecimento de armas dos iranianos para o Hezbollah, inviabilizará o financiamento contínuo do grupo terrorista libanês em sua guerra contra Israel.
A figura temida e cruel de Assad fica hoje na memória e nos traumas de milhões de sírios, mas a grande questão envolve o futuro do país. Dentro dos maiores vitoriosos na tomada de Damasco, está o grupo terrorista HTS (Hayat Tahrir al-Sham), uma organização paramilitar sunita, nascida a partir da Al-Qaeda e que no passado já pregou a jihad global e a implementação da sharia em um país étnica e religiosamente diverso.
Nos últimos anos, a sua principal liderança, Abu Mohammed al-Julani, concedeu uma série de entrevistas a influentes jornais ocidentais, dizendo que os dias de radicalismo ficaram para trás e que pretende agora construir um estado moderno a partir das ruínas sírias. No passado, outros grupos terroristas que foram alçados ao poder de maneira repentina, como é o caso do Talibã no Afeganistão atualmente, também fizeram promessas de moderação, até oprimirem ainda mais suas minorias e mulheres, quando os holofotes da comunidade internacional se voltam para outro canto do mundo. Por isso mesmo, as entrevistas polidas e discursos moderados são escutados com enorme receio e desconfiança por toda a comunidade internacional.
Há também outras fações dentro da oposição como o Exército Livre da Síria, que nas primeiras fases da guerra colaboraram com as potências ocidentais contra o regime de Assad. Contudo, a vitória militar alcançada pelo HTS pode deixar de fora da partilha do poder outros grupos mais moderados em uma nova Síria.
Não bastando isso, temos ainda a autodenominadas Forças Democráticas Sírias (SDF), uma aliança de milícias curdas que atuam no nordeste do país, e tem como objetivo ampliar a influência da etnia dos curdos na política regional a ponto de um dia conseguirem sua própria nação independente. Em um cenário de terra arrasada e com tantos jogadores internos e externos com interesses diversos, a fórmula para um futuro promissor não conseguiu ser encontrada até o presente momento.
Com muitos grupos fortemente armados e buscando objetivos diferentes, a chance de um reaquecimento da guerra civil existe, desta vez sem as forças fiéis a Assad no cenário, mas ainda formando um conflito multifacetado e complexo que prioriza muitas vezes os interesses internacionais aos interesses dos sírios.
Os russos e iranianos ainda buscam manter um pouco da influência que detinham, os turcos e cataris se entusiasmam com a vitória do HTS, as monarquias ricas do Golfo se sentem mais poderosas sem um líder xiita no centro do Oriente Médio, os americanos e europeus veem uma oportunidade para a fragmentação territorial que possivelmente daria nascimento ao Curdistão, enquanto os chineses analisam tudo de maneira pragmática para também conseguirem assegurar a sua influência nessa região tão estratégica do mundo.
Considerando tudo isso, a possibilidade da perda da integridade territorial da Síria é uma preocupação muito grande. Alguns analistas acreditam que em um cenário de reativação da guerra civil, ou da negociação do seu fim, a Síria no mapa como a conhecemos, pode se fragmentar ainda mais e até mesmo de maneira oficial.
Enquanto milhões de sírios refugiados pelo mundo respiram aliviados e tantos outros já planejam o retorno ao país de origem, as incertezas crescem, preocupados que país que tanto esperou por esse momento, tenha seu renascimento com os mesmos vícios do passado. O temor que a Síria de Assad seja mais palatável que a Síria de amanhã é real, e infelizmente, a trágica história do Oriente Médio não nos deixará descartar essa possibilidade tão cedo.
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