Crítica | 2001: Uma Odisseia no Espaço mostra que podemos estar no início do fim

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Talvez, o mais complicado de escrever sobre um filme consolidado, que resistiu ao teste do tempo e se tornou um clássico seja o fato de que praticamente tudo já foi dito sobre ele. Somente na Internet Movie Database (IMDb), 2001: Uma Odisseia no Espaço (disponível no Telecine) tem mais de dois mil textos cadastrados, quase três centenas de críticas oficiais e uma avaliação em nota que é resultado dos votos de mais de meio milhão de pessoas.

Além disso, o filme de Stanley Kubrick, que teve sua première exatamente em 2 de abril de 1968 (há exatos 52 anos), já foi tema de livros, artigos acadêmicos e, claro, influenciou o cinema para sempre – algo que é notado especialmente dentro do gênero da ficção científica.

Por outro lado, apesar de ser adorado por uma legião de fãs incondicionais, o filme tem seus detratores, algo que não é difícil de entender. A reclamação, geralmente, gira em torno da lentidão com a qual Kubrick conduziu as cenas – algo que até mesmo o programa Choque de Cultura resolveu abordar e fazer humor.


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Mas escrever sobre 2001: Uma Odisseia no Espaço, hoje, não é somente difícil, é desafiador; e pode parecer prepotente. Meu objetivo, de todo jeito, não é explicar o filme ou dizer se ele é bom, ruim ou derivados – o tempo já fez esse papel e eu, com 12 anos trabalhando com críticas oficiais, não me sinto capacitado e nem me sentirei com mais 12 ou mais 50. A ideia é trazer uma perspectiva pessoal que, talvez, possa ser útil para prolongar a experiência dos 149 minutos daquele que é um dos filmes mais emblemáticos já realizados.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

O amanhecer da humanidade

O sol, que surge inicialmente, pode trazer o conceito de renascimento. Kubrick, conhecido pelo seu perfeccionismo, alinha a ideia da simbologia do sol – que é recorrente durante o filme – com a terra e a lua. Ao mesmo tempo, essa abertura parece carregar consigo o símbolo de um deus neopagão que representa fertilidade, o Deus Cornífero da Wicca, de cabeça para baixo. Essa representação precede uma das cenas icônicas, que traz uma briga entre dois grupos de primatas.

Símbolo da fertilidade oculto, de cabeça para baixo. (Imagem: Warner Bros. Entertainment)

Após se esconder para passar a noite, o grupo perdedor percebe a aparição do monolito e Kubrick – junto ao montador Ray Lovejoy (em seu primeiro trabalho) –, em somente poucas mudanças de cenas, constrói a humanidade: a vingança, o nascimento da consciência, o surgimento da sensação racional de poder, força e domínio, a intimidação através de uma ferramenta (ou arma). Mas, imageticamente, são somente primatas, com um deles representando uma espécie de macho alfa, com o osso fálico na mão e arrogantemente sentindo-se poderoso.

“Sentindo-se poderoso.” (Imagem: Warner Bros. Entertainment)

Nesse momento, Kubrick e Lovejoy – este que chegou a editar O Iluminado (também de Kubrick, 1980), Aliens, o Resgate (de James Cameron, 1986) e Batman (de Tim Burton, 1989) – realizam a transição que seria das mais geniais e significativas da história do cinema: o primata lança o osso para cima e, rodopiando, ele (o osso) transforma-se em uma nave no espaço. Em poucos segundos (dois ou três provavelmente) e a partir de um osso (a morte) e uma construção inorgânica em órbita (onde o homem havia chegado – e, na realidade, o homem só chegou à lua um ano após o lançamento do filme), 2001: Uma Odisseia no Espaço viaja milhões de anos e reflete a história da humanidade de maneira absoluta e até sarcástica.

“O primata lança o osso para cima.” (Imagem: Warner Bros. Entertainment)

Não demora para que a construção kubrickiana de símbolos ressurja, dessa vez com comentários sobre o presente: a caneta que flutua na gravidade zero como flutuou o osso jogado para cima indicando que a força de uma assinatura pode ser maior do que a de uma arma – podendo comandar milhares de armas inclusive. Vê-se que a brutalidade do primata, que chega a ser sádica, cedeu espaço para a diplomacia, mas que nem por isso as guerras foram extintas. O que toma conta, enfim, é uma guerra silenciosa – o mundo estava em plena Guerra Fria. Segue-se a uma conversa que remete à briga dos dois grupos de primatas: se, antes, a briga era por um poço d’água, agora os homens em reunião conversam em uma mesa circular (todos iguais – como na clássica Távola Redonda) com copos d’água.

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Fruto da evolução

Toda essa evolução chega à nave Discovery One, que vai a Júpiter – seguindo um sinal do monolito. Aos poucos, Kubrick vai deixando pistas de que o homem evoluiu até o ponto da arrogância máxima, de acreditar tanto em seu poder e inteligência que subjuga a tudo. Ali, na Discovery One, a humanidade é como ratos de laboratório, correndo em círculos. O controle é de HAL, uma inteligência artificial poderosa – que tem como batizado a empresa que, ali no final da década de 1960, era a mais poderosa da área (basta utilizar o alfabeto e passar cada letra uma vez à frente e ler IBM – Kubrick, judeu de nascimento, não perdeu a chance de cutucar a empresa que forneceu serviços para a Alemanha de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial).

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O controle é de HAL, uma inteligência artificial poderosa. (Imagem: Warner Bros. Entertainment)

A partir da apresentação de HAL, o tratamento dado pela direção de Kubrick parece contextualizar toda a apatia dos personagens humanos. Enquanto o diretor traça um paralelo (um transversal na verdade) com a expressividade exacerbada dos primatas do início, fazendo com que seus atores soem apáticos e inexpressivos, HAL demonstra ter muito mais emoções em sua fala monótona. A perda da humanidade do homem por meio do envolvimento com as máquinas e o aumento das emoções das máquinas por meio do envolvimento com a humanidade parecem selar outro futuro, este que, naquele ponto do mundo e até hoje, ainda é uma incógnita.

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Fica, porém, um pouco mais claro através da direção de arte de John Hoesli (de O Buraco da Agulha), a utilização da ambiência para revelar as camadas do filme. Essa ideia de Kubrick faz com que Hoesli construa cada cômodo com a intenção de provocar certa insensibilidade: tudo é meio sem cor, meio sem arte (contrastando brutalmente com a trilha sonora tomada por clássicos), séptico e frio. É interessante perceber, por exemplo, como Interestelar (de Christopher Nolan, 2014) faz um paralelo nessa desconstrução das emoções: enquanto o filme de Nolan tem uma cena – talvez a sua melhor – que mostra o protagonista (interpretado por Matthew McConaughey) assistindo aos filhos e acabando por chorar compulsivamente, em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o Dr. Frank Poole (Gary Lockwood) interage da mesma forma com familiares, mas sem qualquer reação sentimental.

 

A unidade do filme de Kubrick, assim, é o princípio de tudo: dá-se lentidão a uma evolução de milhões de ano e, simultaneamente, mostra-se que, na crença de ser tão evoluído, o homem não deixou de ser um primata. HAL – que é fruto da evolução e não a evolução em si – não somente entende a sua superioridade, como controla o homem, chegando a atestar, em sua manipulação, que um provável fim da humanidade é reflexo dela própria: “Falha humana. Isso já aconteceu antes. Sempre foi devido a falha humana.”

Poeira estelar

A evolução, que desde o princípio é regida pelo poder (e a corrida espacial é uma das evidências além-filme), cede uma complexidade aos personagens como raros filmes conseguem. Enquanto HAL, vilão (afinal, é referência à Alemanha nazista), quase implora por sua vida e, com sua voz profundamente grave, canta, o Dr. Dave Bowman (Keir Dullea) chega ao seu nível de emoção mais genuíno na interação mais direta com o antagonista. A exploração do medo, realizada por Kubrick e seu corroteirista (o escritor Arthur C. Clarke), dessa forma, acaba por fundamentar esse sentimento como um divisor: HAL não tem poder de fato sobre a sua existência; seu medo é o despertar das emoções humanas… o renascimento da humanidade.

“O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo.” – Leon Tolstói

Se o renascimento da humanidade é o reflexo das emoções mais primitivas, nesse ponto, Kubrick passa a apostar totalmente na subjetividade – ou ainda mais nela – com planos grandiosos que podem remeter à grandeza do universo. Não somente o homem renasce como existe uma evocação freudiana nas imagens. A Discovery One, que lá no início referenciava o osso fálico, ejeta a cápsula com o Dr. Dave e ela (a cápsula) adentra em uma fenda (nada é mera coincidência – ainda mais em um filme de Kubrick). Após galáxias se refazendo e a vida procurando se estruturar – e pode ser impressionante como tudo é sobre a vida ou a morte (criação ou renascimento ou o fim de tudo) –, o protagonista chega a um cômodo decorado por Hoesli com móveis e pinturas renascentistas (o renascimento novamente).

Kubrick, judeu de nascença como dito, faz seu personagem quebrar uma taça: símbolo do casamento judaico, essa quebra, além de simbolizar no ritual que o homem é mortal e representar reconstrução, rima diretamente com a canção cantanda por HAL, que, em tradução livre, diz:

“Daisy, Daisy, dê-me sua resposta
Eu estou meio louco de amor por você
Não será um casamento elegante
Eu não posso pagar uma carruagem
Mas você ficaria linda em uma
Bicicleta construída para dois”

De fato, não é um casamento elegante. É quase como uma crise de abstinência – que seria, no caso e talvez, do contato com as máquinas. A música original ainda diz (também em tradução livre): “Afastando-se do caminho da vida.” Aquele homem, enfim, olha para a taça tal qual o primata toma consciência da utilização do osso como ferramenta – o plano é o mesmo apesar do ambiente diferente. É um momento de ruptura, de mudança. Ele (Dave), então, vê o monolito e, procurando tocá-lo, remonta a pintura A Criação de Adão (de Michelangelo – renascentista aliás).

A decoração renascentista de Hoesli e o monolito. (Imagem: Warner Bros. Entertainment) 

Assim, morre o homem e nasce novamente a humanidade. É tudo cíclico e, o universo, eterno como deve ser. Nada mais claro para o renascimento do que um feto, mas com um olhar de sabedoria que quebra a quarta parede para confirmar, quem sabe, que, antes da razão (ou antes das máquinas) existe o coração; antes da dominação e da subjugação, existe a empatia; e, o que existe depois de qualquer maldade, é o princípio do fim.

“Nada mais claro para o renascimento.” (Imagem: Warner Bros. Entertainment)

Resta saber se, nesse final, estaremos aptos a um recomeço ou se permaneceremos como poeira estelar.

*Crítica dedicada ao amigo e colega Dan Hetzel.

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Fonte Sihan Felix
Data da Publicação Original: 3 April 2020 | 12:15 am


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